64 anos

Amanda Carneiro
4 min readJun 30, 2022

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O toque do celular dele foi “Me adora” da Pitty por alguns anos. Era engraçado estar na lotérica, no banco ou no mercado com ele e do nada: “Tantas decepções eu já vivi, aquela foi de longe a mais cruel…”. E ele atendia o celular tirado daquele suporte de colocar no cinto que todo pai dos anos 2000 que se presasse tinha…
Tenho uma coisa muito afetiva com músicas e até hoje escuto essa música lembrando dele, inclusive tive a chance de ir ao show da Pitty recentemente e chorar ao vivasso com essa música.
Meu pai era uma pessoa cheia de peculiaridades e uma delas era essa: o gosto musical. Ele demorou a ter acesso a vários tipos de música e conhecer bandas que eram da fase jovem dele como Pink Floyd e Queen, muitas vezes era eu quem mostrava as bandas pra ele. Nós criamos todas as playlists de viagem, todos os cds do carro eram escolhas nossas, burned no Nero e em todos, tinha pelo menos uma música que ele cantava muito errado ou de um jeito muito engraçado. Às vezes eu achava que ele nem estava prestando atenção e do nada estava cantarolando Molly’s Chamber do King’s of Leon e quando ele percebia que estava fazendo graça, toda vez que a música tocava, cantava errado com a voz engraçada.
Outra gracinha dele que me faz sorrir de canto sempre que lembro é o jeito que ele chamava algumas coisas, como por exemplo: As pirâmides do Egito, que sempre foram “As piranhas do Egídio”.
É difícil ver o tempo passando e perceber que é verdade: as memórias vão falhando e a pessoa começa a perder características na nossa mente… Às vezes eu tento lembrar dele falando e não lembro da voz, mas graças a Deus, ainda lembro das vozes dele cantando. Eu me apego a essas memórias com todas as minhas forças, porque esses momentos nossos cantando e ouvindo música no carro eram sempre momentos bons. Eu só lembro dele associado a músicas quando a memória é boa.
Ele queria participar de tudo e gostava quando encontrava alguma coisa pra fazer com a gente que a gente gostava muito, nem sei se ele gostava tanto assim, mas fazia parecer que sim. Eu e ele maratonamos todos os filmes nerds que eu consegui encontrar, de Senhor dos anéis a todos os Star Wars pelo menos 1x por ano. Ele dormia no meio do filme e comentava os pedaços pelo meio: “To acordado, to acordado, o véio mago tava falando agora”(vulgo Gandalf). Ele tinha o hábito de ficar acordado até de madrugada vendo qualquer coisa na tv e eu costumava acompanhar ele, nessa fase nós descobrimos cada filme esculhambado pra ver e a gente sempre ria muito, minha irmã era nova demais pra entender e minha mãe não via muita graça, então ficávamos os 2 rindo de alguma coisa muito besta e comentando coisas que só nós entendíamos.
Acho que essa foi a fase que mais estivemos próximos… Fora a fase que eu era bem criancinha, que eu definitivamente era a filhinha do papai. Chegava a ficar doente quanto passava muito tempo longe dele.
A parte mais difícil em perder ele é a de não poder chamar mais, não poder ir lá e conversar com ele, dar risada, brincar de lutinha… Qualquer coisa na verdade. Ultimamente eu tenho pensado muito no quanto eu queria perguntar algumas coisas, o quanto queria chamar ele e entender algumas fases da vida dele, algumas escolhas, me frustra saber que só posso imaginar as respostas e nunca vou poder de fato questionar ele ou ouvir mais uma história que eu não conhecia.
Ao mesmo tempo sou grata por saber que ele deu tudo que tinha, fez todo o possível. Ele nunca teve acesso a terapia, nem a estudos avançados, mas ele fez questão de garantir uma boa educação para mim e para minha irmã e mesmo sem saber como resolver os próprios conflitos, ele ajudou muita gente a resolver os seus. Eu demorei a sentir a admiração que sinto hoje. Eu e ele passamos por longas fases difíceis como pai e filha, eu não entendia o que ele esperava de mim e ele não entendia que eu estava crescendo. Até ele ir embora eu e ele tivemos conflitos, mas eu nunca duvidei do quanto ele me amava, a gente se provocava feito gato e cachorro, mas ele sabia que eu amava ele e eu sabia que ele me amava. Hoje eu consigo me distanciar e ter certeza de que tenho muitas características dele, hoje sou grata por isso e sou feliz por saber que uma parte dele nunca vai morrer dentro do meu coração.
Essa semana era pra ser o aniversário dele de 64 anos. Feijoada e bolo de morango, era isso que era pra ter acontecido. No lugar disso só ficam os relatos de memórias que eu não quero que escapem pelos dedos.

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Amanda Carneiro

Ela/Dela Programadora, apaixonada por tecnologia e pelo universo tech. Amo escrever, amo a arte e sonho em viver viajando.